Alguns fatos me parecem tão cruéis que não acho palavras à altura para descrevê-los, fico emudecida, procurando entender aqui no meu silêncio, uma forma de dar sentido, muitas vezes, acabo chorando para aliviar a mágoa gerada.
Em meio a quase três meses de isolamento imposto pela pandemia do coronavírus, acompanhando milhares de mortes e perdas materiais no mundo todo, sob o discurso indiferente e sarcástico de alguns governantes, acontece o trágico assassinato de um homem negro por um covarde policial branco nos EUA, que provocou uma comoção mundial e manifestações anti racistas nas principais cidades americanas e europeias.
Fico comovida ao ver tantas pessoas mobilizadas por uma causa justa e acredito que a pandemia contribuiu para que muita gente tenha refletido sobre a fragilidade humana. Por outro lado, fico pensando por que um ato de violência semelhante ocorrido aqui no Brasil ainda não nos impressiona da mesma forma. Somos um país com predomínio de mestiços e negros, diferentemente dos americanos, mas não nos sensibilizamos com o genocídio de pessoas negras no nosso país. No dia 18 de maio, João Pedro de 14 anos foi morto por policiais dentro de casa, em São Gonçalo, seu corpo foi retirado do local sem que a família fosse avisada, segundo divulgou a imprensa, e esse fato brutal, não provocou nenhuma manifestação pública da sociedade brasileira. Um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no Brasil e esse dado não é suficiente para impactar e gerar revolta na maioria da população.
O Brasil manteve a escravidão por 300 anos, de 1550 a 1888, fato que determinou quem somos física e culturalmente, os descendentes de escravos sentem até hoje dificuldades para se estabelecerem socialmente, sofrem por exclusão social e por preconceitos. Me parece óbvio que, se somos um país de mestiços, e não conseguimos enxergar a necessidade de termos políticas públicas que diminuam as desigualdades sociais, através de medidas efetivas que ampararem e resguardem direitos a oportunidades dessa parcela imensa da população, não estaremos de fato desenvolvendo como nação. É preciso entender que qualquer programa de governo que não priorize a inclusão social e a diminuição das desigualdades que afeta quase metade da população brasileira, estará fadado ao fracasso.
Ainda vai levar um tempo, mas precisamos refletir sobre a cultura escravocrata que permeia essas ações perversas de exclusão, que são alimentadas por crenças egóicas e ilusórias de que um indivíduo pode ser melhor do que o outro por pertencer a determinado segmento étnico, social, financeiro, intelectual, profissional ou por qualquer outra coisa. Não haverá a tão desejada diminuição da violência, enquanto houver dois pesos e duas medidas, em oportunidades e punições, enquanto houver essa desigualdade cruel. As mudanças devem começar individualmente, através da autorreflexão, de se questionar sobre a necessidade frequente de subjugar, de se sentir superior, de diminuir o outro para se sentir importante. É preciso divergir com respeito, sem desqualificar o outro, sem ofender. É possível brilhar com sua própria luz, sem apagar a luz do outro. É necessário compreender que somos diferentes externamente, mas absolutamente iguais na condição humana, e não custa lembrar que independente do papel que ocupamos, morreremos todos um dia.
Por isso, enquanto vivemos, todas as vidas importam e, aqui no Brasil, vidas negras precisam importar bem mais.